domingo, 7 de fevereiro de 2010

TRÊS XÍCARAS DE CHÁ III

Mortenson passou a acreditar que não teria como retribuir a acolhida que recebera de seus anfitriões em Korphe, mas determinou-se a tentar. Começou a dar todos os seus pertences. Pequenos objetos úteis como garrafas térmicas e lampiões eram eram inestimáveis para os baltis, que caminhavam longas distâncias para pastorear seus animais durante o verão, e distribuiu-os entre os membros da extensa família de Haji Ali.
Mas foram os suprimentos que levara no kit médico da espedição, além de sua experiência como enfermeiro de traumatologia, os itens mais valiosos. Todos os dias, à medida que se recuperava, passava cada vez mais horas escalando as íngremes passagens entre as casas de Korphe, fazendo o possível para atendê-los no que precisavam. Com tubos de pomada antibiótica, tratou feridas abertas, lancetou e drenou ferimentos infeccionados. Aonde fosse, em todos os lares, via olhares implorando por auxílio, e baltis mais velhos que sofriam em silêncio há longos anos. A notícia sobre seu atendimento se espalhou, e os doentes que viviam nas redondezas de Korphe começaram a enviar parentes para buscar o "Dr. Greg", como ele passou a ser conhecido a partir de então no norte do Paquistão, não importava quantas vezes tentasse lhes dizer que era apenas enfermeiro.
Frequentemente, durante sua permanência em Korphe, sentiu a presença de sua irmã caçula Christa, especialmente quando estava com as crianças da aldeia.
Tudo na vida deles era com sacrifício, lembrando-lhe o modo como Christa penava para fazer as coisas mais simples. E também como ela perseverava, não importasse que dificuldade a vida lhe apresentasse.
Decidiu que quando chegasse a Islamabab, usaria todo o dinheiro que pudesse para comprar livros didáticos para serem usados na escola ou outro material escolar. Antes de dormir, deitado junto à fogueira disse a Haji Ali que queria visitar a escola de Korphe, e insistiu mesmo depois de perceber o olhar evasivo do homem. Finalmente, o chefe concordou em levá-lo à primeira hora, na manhã seguinte.
Depois do café da manhã, Haji Ali conduziu Mortenson por uma escarpa até uma extensa laje a 250 metros acima do Braldu. A vista era esplêndida, com as geleiras gigantescas do alto Baltoro contra o azul muito acima das paredes rochosas e cinzentas de Korphe. Mas Mortenson não estava admirando a paisagem. Ele estava estupefacto ao ver 82 crianças, 78 meninos e quatro meninas que tiveram a coragem de acompanhá-los, ajoelhados no chão gelado, a céu aberto. Haji Ali, evitando encarar Mortenson, disse que a aldeia não possuia uma escola, e que o governo paquistanês não lhes mandara um professor. O salário de um professor era de um dólar ao dia, ele explicou, que era mais que a aldeia poderia pagar. Então, dividiam um professor com a aldeia vizinha de Munjung que lecionava em Korphe três dias por semana. Durante o restante do tempo, as crianças faziam sozinhas as lições que lhes eram passadas.
Mortenson observou, com o coração na boca, os alunos atentos começarem seu "dia escolar" cantando o hino nacional do Paquistão. Abençoada seja a terra sagrada. Feliz o reino da abundância, símbolo das altas esferas, a terra do Paquistão, eles entoavam com doce inocência, com a fumaça saindo de seus hálitos, sinalizando a proximidade do inverno. Viu a neta de Haji Ali de 7 anos, Jahan, alta e imponente, usando um véu sobre a cabeça, enquanto cantava. Que a nação, o país e o estado brilhem em perpétua glória. O crescente e a estrela desta flâmula conduzam o caminho para o progresso e a perfeição.
Quando entoaram a última nota do hino, as crianças se sentaram em círculo e começaram a copiar as tabuadas de multiplicação. A maioria escrevia no chão com gravetos que haviam trazido. As mais "afortunadas", como Jahan, tinham tabuletas de madeira, nas quais escreviam com varetas com a ponta umedecida com lama.
Havia neles uma vontade de aprender tão grande, apesar de todas as dificuldades, que se lembrou de Christa e pensou que tinha que fazer alguma coisa.
Mas o quê? Tinha dinheiro suficiente apenas para viajar de jipe e ônibus de volta a Islamabab e pegar o avião para casa, se comesse pouco e ficasse nas hospedarias mais baratas.
Na Califórnia, ele somente poderia esperar por trabalhos esporádicos de enfermagem, e a maior parte de seus bens cabia no porta-malas do seu buik borgonha, bebedor de gasolina que era o que poderia chamar de lar, o "La Bamba". Ainda assim, deveria haver algo que pudesse fazer.
Ao lado de Haji Ali, num ponto alto do vale, com uma visão cristalina das montanhas que fizeram com que cruzasse a metade do mundo para escalar o K2, todo o propósito de colocar um colar de Christa no alto, de repente, perdera o sentido. Havia algo muito mais significativo que poderia fazer para homenagear a memória de sua irmã. Colocou as mãos sobre os ombros de Haji Ali, um gesto que o ancião fizera tantas vezes desde que tomaram sua primeira xícara de chá.
-- Vou construir uma escola para vocês, disse ele, ainda sem perceber que, com estas palavras, o rumo de sua vida acabara de mudar definitivamente de direção, tomando um caminho muito mais serpenteado e árduo do que as trilhas que tomara desde que descera do K2.
-- Eu vou construir uma escola, disse Mortenso. Prometo que vou.
(continua).

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