sexta-feira, 5 de agosto de 2011

OS RAIMUNDOS (continuação)

Então, o sr. Raimundo nos surpreendeu. Teve uma melhora significativa nesta semana. Os rins voltaram a funcionar e a pneumonia está sob controle. Mas o estado dele não deixa de ser grave. Seu maior inimigo é a idade. Toda aquela energia que ele tinha foi gasta na luta contra as infecções do pulmão e dos rins. Agora ele está muito fraco e não suportaria outra infecção.




Era esse o discurso do doutor Eduardo, ou outro plantonista, toda tarde na UTI do Hospital Márcio Cunha. De vez em quando estava outro médico de plantão, mas o discurso não variava muito. Até que no último domingo, o plantonista era nada mais, nada menos que o doutor Emerson. Aquele mesmo que atendera, anos antes, nos postos de saúde da cidade de Marliéria, outrora Babilonia eterna. Foi um encontro cheio de recordações, pois ele fora o médico que acompanhou duas irmãs e o cunhado desse sr. Raimundinho. Mas seu parecer também não destoou da opinião de seus colegas.
Hoje amanheceu, surpreendetemente, um dia chuvoso. Graças a Deus que a secura do ar já estava incomodando. Essas lembranças estavam cochilando na lista do blog desde 20 de junho. Seis, sete ou alguns dias mais após esses encontros com os médicos que o acompanharam no seu estágio na UTI do HMC. Que para tudo nessa vida, até para nos despedirmos dela, precisamos de uma preparação.
Agora, de uns dias para cá, assim que vim retomar meus plantões com Naná, começaram a aparecer pessoas interessadas em adquirir o que era dele. É a lei da vida. E a gente fica sem entender como aquele sitiozinho dele pode continuar existindo sem ele. Parece que o certo era ele estar lá. Distribuindo entre as pessoas o que colhia. Os quiabos, as laranjas e as mexericas. Dizendo para a Edna, quando eu for embora quero que todo mundo se lembre de mim como uma pessoa que não tinha dó de dar o que tenho. Só não gosto quando entram lá fora de horas para roubar. Apanham as laranjas verdes, estragam as plantas, quebram os galhos. Pra que? Não precisa. É só pedir que eu dou, mas quando estiverem maduras.
Foi aí que me lembrei desse meu compromisso com ele. Preciso continuar com os Raimundos. Depois dele, ainda ficam faltando dois.

Ele tinha sido taxativo quando conversávamos. Conversas sadias sem premonições tristes. Depois dessa operação que preciso fazer, vou parar com essa fazeção de rapaduras. Tou sentindo que esse serviço ta muito pra mim. E a Dinha vive me falando que eu preciso parar com esse serviço. Gozado que ela mesma, agora, arrumou essa serviçama de fazer essa biscoitama toda. E fica querendo me governar. Já apareceram muitos perguntando se eu não vendo essa área. Vou vender a parte do canavial e ficar com a minha casinha só. Mas quero vender para alguém da família. Primeiro porque assim vou poder morar nela, tendo companhia perto. Não tenho coragem de morar ali sozinho, longe de todo mundo. Depois porque acho que nossa cidade precisa de mais moradias. Só vendo com a condição de ser para construir. E se eu vender para alguém de fora e aparecer alguém de casa falando que queria ter comprado vou ficar muito chateado.

E assim tio Raimundinho ia me contando seus planos. Um dia, estávamos indo para fazer mais alguns dos infindáveis exames a que se submeteu antes da cirurgia, e assim de repente tirou do pulso um relógio SEIKO daqueles que foram muito populares da década de sessenta/setenta do século passado e me perguntou, você quer esse relógio? Levei um susto. Mas por que tio Raimundo? Havia momentos que ele me parecia tão grande que não conseguia chamá-lo no diminutivo. Não gosto mais desse relógio. Se deixar ele fora do pulso ele para e depois é uma dificuldade para acertar. Bons são esses a bateria e eu tenho um monte deles. Comprados no camelô mas andam direitinho que nem os outros. Esse aqui já ofereci ao Sonson mas ele disse que não usa relógio. Ofereci ao Cor Jesus e ele também disse que não gosta de relógio. Se você quiser, ele é seu. É claro que quero, muito obrigado.

Só o tirei do braço para mandar fazer uma revisão e trocar a lente que estava trincada. Também, se tirar ele para. Aposentei meu Casio digital, velho de guerra, que me acompanhava hà uns vinte anos.

Tinha essa necessidade de agradar, de ser generoso. E foi.
Quando inventaram de promover, anualmente, um encontro dos descendentes de seus pais, ele já era o último dos tios vivos e em condições de comparecer, além de quatro cunhadas que agora são três e de uma irmã que já vivia em silêncio, quietinha em sua cama, alheia a tudo e a todos. E ele aderiu com prazer. Não faltou a nenhum, nem a esse último, depois de sua partida, que ele foi o parente mais presente. Estampado no peito e nos corações de cada um. É que havia dito, em segredo, a alguns sobrinhos que esse ano queria doar as camisetas que são confeccionadas a cada encontro. Como o segredo foi de polichinelo, muitos sabiam dessa intenção e a levaram em frente. Mesmo porque ele já havia providenciado os recursos para a empreitada.

Tio Raimundinho, você não foi embora. Sua presença está muito forte aqui entre nós. Como dizia Guimarães Rosa, você agora está encantado.






AV.