Vendo você assim tão quieta me lembro do quanto você era espoleta. No princípio, por ouvir falar, você não descansava seus pes na máquina de costura. Era o dia inteiro, até altas horas da noite. Hábito já adquirido nos tempos de solteirice. Agora intensificado pela necessidade de ajudar na manutenção da casa. Você tem em mim testemunha sem vício. Lembra-se daquela noite que ficamos juntos, você costurando e eu escrevendo a palavra PENICILINA? Havia pronunciado PELICILINA e você não titubeou. Logo, à noite, enquanto eu estiver costurando, você vai escrever a palavra correta duzentas vezes para não esquecer. Nunca mais esqueci, nem da palavra nem dos olhinhos de nove anos ardendo com a fumaça da lamparina de querosene. Seus olhos não ardiam?
Depois de terminado o curso primário, você bateu o pé. Meus filhos têm de estudar mais. Eu queria tanto estudar e não pude. O pai, já antevendo um ajudante, teve de ceder. Aí veio aquela história de sonhar ter um filho padre. Não sei se era verdade. Você dizia que queria ser freira. Ou apenas conveniência, pois só em seminários era possível, para quem não tinha recursos financeiros, "estudar os filhos".
E foram aqueles anos intermináveis de arrumação daquela mala enorme. Conseguir uma forma de me fazer chegar ao destino. A sorte era que a turma era grande e sempre havia alguém que se responsabilizava pela condução dos futuros padres. Vingou só o padre Duile.
Anos ainda mais intermináveis para quem, na diminutas férias de quinze dias, se extasiava ao ver as meninas da pacatíssima cidade. Bem que os padres lá do seminário, antes da partida, recomendavam muito cuidado, principalmente com as primas.
Mas você não fez drama quando finalmente isso aconteceu. Seu sonho de dois filhos padres, nessa época já eram dois em seminários, acabou-se. Talvez um. Nenhum. Você agora arregaçou as mangas para que eles não parassem de estudar. Conseguiu mais essa vitória, aos trancos e barrancos.
Acolheu com o maior carinho aquela que escolhi para lhe darmos suas netas.
Então, veja a compensação, nesta foto. Você com as três, em altos papos.
Não virou freira. Não teve filhos padres. Mas conviveu com anjos.
E foram vários anos de bolinhos fritos. Estouradores. De idas e vindas. De preocupações, de tristezas, mas também de muitas alegrias. Os presentes de aniversários arrumados às pressas. Quase sempre sabonetes, pois sempre os tinha em estoque para uso da casa. E as meninas - vovó só dá sabonetes pra gente. Mas você queria agradá-las. Era o que você tinha assim na mão. Papel de presente também não era problema. Você tinha verdadeira paixão por eles e nunca os jogava fora. Alisava, alisava e guardava.
Até que, como no Gênesis, apareceu uma cobra. Agora entendi porque a Rachel tem esse pavor inexplicável desse bicho. Meu pai sempre afirmava que aquela picada marcou o início de tudo. A gente nunca concordou com ele. Mas, pensando bem, ele é que convivia mais de perto com você. Olhe eu a chamando de você. Sempre a tratamos de senhora. Eu acho você mais carinhoso. Quem sabe se ele não tinha razão?
E você foi murchando como uma folha no outono, antes de voar da árvore para se tornar fonte de vida no chão. Porque são as folhas que caem das árvores que lhes dão alimento.
Houve aquela fase de querer voltar para sua infância. Talvez numa tentativa inconsciente de lutar. E meu irmão a levou para ver a sua Serra. Mas você não acreditou. Não é essa a minha Serra. É claro que já não era mais.
E você quis ver o pé de murta que havia na escada da fazenda do seu padrinho Henrique. E o pé de murta também já havia morrido. Acho que ali você teve um lampejo e não quis ou não conseguiu lutar mais.
Mas ainda teve forças para lutar pelas tampas de suas panelas com outro anjo que apareceu na sua vida. Um anjinho louro enfoguetado que adorava espalhar as tampas pela casa e você partia para a luta - minhas tampas de panelas, não!- Você está se lembrando, pois vejo um sorriso em seu rosto.
E veio a queda e a fratura do fêmur. Ou a fratura do fêmur e a queda. Os médicos disseram que pode ter sido essa a ordem dos acontecimentos.E você não andou mais. Virou o nosso bebê. Que nunca chorou de noite. Que nunca deu o menor trabalho. Aguardava tudo com a maior paciência. Já não falava. Balbuciava, às vezes, alguns sons que não conseguíamos decifrar. Só movimentava os braços, apanhando alguma coisa no ar. Estaria conversando com seres do mundo em que estava prestes a ingressar? Os olhos abriam e fechavam sem expressar nenhum sentimento. Nem dor, nem alegria. Você parecia uma dessas bonecas modernas que mesmo sendo modernas não deixam de ser bonecas.
Uma pena porque apareceram mais bisnetos. Um, por ver você sempre deitada, dizia que você era a bisa que dorme. Mas os bisnetos que você não conheceu é como se não os tivesse perdido, esse é o consolo.
Agora eu fico olhando você assim tão séria, tão quietinha e pensando que lá fora, na madrugada fresquinha tão diferente dos dias desse verão, na imensidão azul, só podia ser azul, do universo, aquela estrelinha nova brilhando na constelação do Cruzeiro do sul está a nos acenar que ainda há esperança.
A sua bênção, minha mãe!