quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

PARA MINHA MAE




Vendo você assim tão quieta me lembro do quanto você era espoleta. No princípio, por ouvir falar, você não descansava seus pes na máquina de costura. Era o dia inteiro, até altas horas da noite. Hábito já adquirido nos tempos de solteirice. Agora intensificado pela necessidade de ajudar na manutenção da casa. Você tem em mim testemunha sem vício. Lembra-se daquela noite que ficamos juntos, você costurando e eu escrevendo a palavra PENICILINA? Havia pronunciado PELICILINA e você não titubeou. Logo, à noite, enquanto eu estiver costurando, você vai escrever a palavra correta duzentas vezes para não esquecer. Nunca mais esqueci, nem da palavra nem dos olhinhos de nove anos ardendo com a fumaça da lamparina de querosene. Seus olhos não ardiam?
Depois de terminado o curso primário, você bateu o pé. Meus filhos têm de estudar mais. Eu queria tanto estudar e não pude. O pai, já antevendo um ajudante, teve de ceder. Aí veio aquela história de sonhar ter um filho padre. Não sei se era verdade. Você dizia que queria ser freira. Ou apenas conveniência, pois só em seminários era possível, para quem não tinha recursos financeiros, "estudar os filhos".

E foram aqueles anos intermináveis de arrumação daquela mala enorme. Conseguir uma forma de me fazer chegar ao destino. A sorte era que a turma era grande e sempre havia alguém que se responsabilizava pela condução dos futuros padres. Vingou só o padre Duile.

Anos ainda mais intermináveis para quem, na diminutas férias de quinze dias, se extasiava ao ver as meninas da pacatíssima cidade. Bem que os padres lá do seminário, antes da partida, recomendavam muito cuidado, principalmente com as primas.

Mas você não fez drama quando finalmente isso aconteceu. Seu sonho de dois filhos padres, nessa época já eram dois em seminários, acabou-se. Talvez um. Nenhum. Você agora arregaçou as mangas para que eles não parassem de estudar. Conseguiu mais essa vitória, aos trancos e barrancos.

Acolheu com o maior carinho aquela que escolhi para lhe darmos suas netas.

Então, veja a compensação, nesta foto. Você com as três, em altos papos.

Não virou freira. Não teve filhos padres. Mas conviveu com anjos.

E foram vários anos de bolinhos fritos. Estouradores. De idas e vindas. De preocupações, de tristezas, mas também de muitas alegrias. Os presentes de aniversários arrumados às pressas. Quase sempre sabonetes, pois sempre os tinha em estoque para uso da casa. E as meninas - vovó só dá sabonetes pra gente. Mas você queria agradá-las. Era o que você tinha assim na mão. Papel de presente também não era problema. Você tinha verdadeira paixão por eles e nunca os jogava fora. Alisava, alisava e guardava.

Até que, como no Gênesis, apareceu uma cobra. Agora entendi porque a Rachel tem esse pavor inexplicável desse bicho. Meu pai sempre afirmava que aquela picada marcou o início de tudo. A gente nunca concordou com ele. Mas, pensando bem, ele é que convivia mais de perto com você. Olhe eu a chamando de você. Sempre a tratamos de senhora. Eu acho você mais carinhoso. Quem sabe se ele não tinha razão?

E você foi murchando como uma folha no outono, antes de voar da árvore para se tornar fonte de vida no chão. Porque são as folhas que caem das árvores que lhes dão alimento.
Houve aquela fase de querer voltar para sua infância. Talvez numa tentativa inconsciente de lutar. E meu irmão a levou para ver a sua Serra. Mas você não acreditou. Não é essa a minha Serra. É claro que já não era mais.

E você quis ver o pé de murta que havia na escada da fazenda do seu padrinho Henrique. E o pé de murta também já havia morrido. Acho que ali você teve um lampejo e não quis ou não conseguiu lutar mais.

Mas ainda teve forças para lutar pelas tampas de suas panelas com outro anjo que apareceu na sua vida. Um anjinho louro enfoguetado que adorava espalhar as tampas pela casa e você partia para a luta - minhas tampas de panelas, não!- Você está se lembrando, pois vejo um sorriso em seu rosto.

E veio a queda e a fratura do fêmur. Ou a fratura do fêmur e a queda. Os médicos disseram que pode ter sido essa a ordem dos acontecimentos.E você não andou mais. Virou o nosso bebê. Que nunca chorou de noite. Que nunca deu o menor trabalho. Aguardava tudo com a maior paciência. Já não falava. Balbuciava, às vezes, alguns sons que não conseguíamos decifrar. Só movimentava os braços, apanhando alguma coisa no ar. Estaria conversando com seres do mundo em que estava prestes a ingressar? Os olhos abriam e fechavam sem expressar nenhum sentimento. Nem dor, nem alegria. Você parecia uma dessas bonecas modernas que mesmo sendo modernas não deixam de ser bonecas.

Uma pena porque apareceram mais bisnetos. Um, por ver você sempre deitada, dizia que você era a bisa que dorme. Mas os bisnetos que você não conheceu é como se não os tivesse perdido, esse é o consolo.

Agora eu fico olhando você assim tão séria, tão quietinha e pensando que lá fora, na madrugada fresquinha tão diferente dos dias desse verão, na imensidão azul, só podia ser azul, do universo, aquela estrelinha nova brilhando na constelação do Cruzeiro do sul está a nos acenar que ainda há esperança.

A sua bênção, minha mãe!












DO RAFAEL

Hoje quero celebrar a vida. E a vida não tem princípio nem fim. É um círculo. Esse é o símbolo mais perfeito. Onde o círculo começa e onde ele termina?
Há momentos em que o traçado se torna mais grosso. Como se o lápis ou o pincel empunhado pelo autor da vida tivesse deixado sair mais tinta que o normal. É quando a vida assume características especiais. Reveste-se de matéria que nada mais é do que uma das manifestações da energia.
E todos os círculos se interagem. Às vezes se sobrepoem. São os círculos familiares. E os traçados mais fortes vão coincidir em algum momento, por algum lapso de tempo. É o período em que pais, filhos e demais círculos convivem materialmente.
Rafael veio e tinha uma missão árdua. Cumpriu-a. A dificuldade da missão não se mede pela duração do traçado. Talvez pela sua intensidade. Mas nenhum círculo é autônomo. Depende dos que estão acima, abaixo e ao lado. É preciso que esses traçados que o circundam e sobrepõem sejam suficientemente fortes para dar-lhe condições de executar sua missão. Caso contrário essa missão é abortada e fica para acontecer em outra ocasião.
Quem sabe quantas vezes Rafael tentara e não encontrara círculos capazes de lhe dar sustentação?
Então, aconteceu. Muitos sofreram por ele e com ele. Mas uma imagem poética muito antiga dizia que o sofrimento é como o processo utilizado pelos garimpeiros. Eles colocam o mercúrio no cadinho junto com o ouro impuro e os submetem a fogo intenso. Esse calor provoca o derretimento da mistura e a separação do ouro puro da borra que adere ao mercúrio. O sofrimento quando passa traz esse brilho do ouro puro.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

CARNAVAL DE NOVO

O carnaval chegou outra vez. Me lembrando que esse blog está completando um ano de idade carnavalesca. Aniversário civil será no dia 23. Então sopraremos a primeira velinha.
Hoje, agora estou em Ipatinga. Me preparando para ir, amanhã, de novo para Babilonia.
Na tv, o desfile da Águia de Ouro de São Paulo.
Foram algumas postagens sem o menor comprometemento de regularidade e de assunto. Apareceram os seguidores. Vinte e oito. Mais ou menos o número de textos publicados.
Agradeço a todos vocês a paciência e o incentivo. Acho que vou tentar emendar mais um ano de escrevinhação. Também não sei fazer outra coisa...
Se o número de seguidores começar a diminuir, então será o acendimento da luzinha vermelha do desconfiômetro e tirarei meu espaço de campo.
Então, Feliz carnaval! Com alegria e responsabilidade. Lembrando que álcool não se mistura com direção e que o importante é que muitos outros carnavais ainda virão. Este não é o último. Então reserveum pouco de você para os próximos carnavais. Não se acabe nesse.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

TRÊS XÍCARAS DE CHÁ IV

Vamos acelerar essa história. Acho uma besteira esse negócio de estabelecer diferença entre história e estória. A própria História não está eivada de estórias? Pois é...

Mas comecei a falar desse assunto achando que num texto só chegava onde queria. Esse já é o quarto e nem sei se acaba hoje. Também se fosse direto ao ponto, ia ficar todo mundo no ar. Tive mesmo que fazer toda essa introdução.

Veio o inverno e Mortenson voltou para seu país. Arrumou um emprego de enfermeiro e começou a procurar patrocinadores para cumprir sua promessa. Começou a escrever numa velha máquina muito pequena para suas mãos, alugada por 1 dolar por hora. Depois de 5 horas só havia datilografado 4 cartas. Colocou-as no correio.

Planejou escrever para todos os senadores do país, artistas, estrelas de cinema, cantores de música pop. Copiava os endereços em revistas que traziam a lista dos cidadãos mais ricos.

Aprendeu a usar o computador e achou muito mais fácil.

Por meio de sua mãe que era diretora de uma escola elementar em Westside, conseguiu autorização para fazer uma palestra, com apresentação de slides, para seiscentas crianças de sua escola. Um mês depois recebeu uma carta com um cheque de 623,45 dólares que as ciranças conseguiram numa campanha intitulada "centavos para o Paquistão". Elas encheram duas latas de lixo de 40 litros com 62.345 moedas de 1 centavo. Foi o primeiro passo.

Por fim, depois de idas e vindas, conseguiu o patrocínio de um milionário proprietário de uma indústria de semicondutores. Dr. Jean Hoerni fora alpinista na juventude e conhecia toda aquela região e tentara escalar o Everest uma dúzia de vezes.

Perguntou-lhe de quanto precisava e Mortenson lhe disse que fizera uma pesquisa e acreditava que com doze mil dolares conseguiria construir a escola. Então o Hoerni lhe mandou um cheque de 12.000 dolares com um bilhete: Me mande uma foto da escola pronta e não me sacaneie. Cordialmente, J. H.

Bem, resumidamente, Mortenson voltou para lá depois de vender tudo que podia, incluindo o carrão velho para conseguir dinheiro para suas despesas e as passagens. Depois de várias peripécias, muita confusão para conseguir comprar o material e levá-lo até aquela altitude, etc. iniciaram a obra da escola.

Mortenson tentava ser um mestre de obras severo. Passava o dia inteiro no canteiro de obra, do nascer ao pôr do sol, usando o prumo para certificar-se de que as paredes estivessem retas e o nivelador de chumbo para checar se estavam alinhadas. Tinha sempre um bloco de anotações na mão, e controlava todos, ansioso para fazer valer cada rúpia investida. Ele não queria decepcionar Jean Hoerni, então cobrava pesado deles.

Uma tarde, no começo de agosto, Haji Ali tocou o ombro de Mortenson e chamou-o para dar uma volta. O ancião conduziu o ex-alpinista morro acima por uma hora. Mortenson achou que estavam perdendo um tempo precioso, quando Haji Ali parou sobre uma laje estreita bem acima da aldeia. Mortenson estava de língua de fora, só de pensar em tudo o que estava deixando de acompanhar desde que saíra da obra.
Haji Ali esperou até Mortenson recuperar o fôlego, então lhe pediu que olhasse para a paisagem. O ar estava cristalino de uma forma que só a altitude consegue deixar. Além de Korphe K2, os picos de gelo do interior do Karakoran erguiam-se, sucessivos, contra um profundo céu azul. Trezentos metros abaixo, Korphe, verdejante entre plantações de cevada madura, parecia pequena e vulnerável, uma jangada viva à deriva sobre um mar de pedra.
Haji Ali estendeu o braço, colocando a mão sobre o ombro de Mortenson.
-- Estas montanhas estão aqui há muito tempo, disse ele. E nós também.
Ele tocou o topi de pele de carneiro marrom-escuro, o único símbolo de autoridade que o murmadhar de Korphe usava, e ajustou-o no alto da cabeça grisalha.
-- Você não pode dizer às montanhas o que fazer, disse ele, com um ar grave que traspassava Mortenson tanto quanto a vista que tinha do alto. - Você deve aprender a ouvi-las. Então agora estou lhe pedindo que me ouça. Pela glória de Alá, o Todo-Poderoso, você já fez muito pelo meu povo, e nós lhe agradecemos. Mas agora você precisa fazer uma coisa a mais por mim.
-- Qualquer coisa, respondeu Mortenson.
-- Sente-se. E fique de boca fechada, disse Haji Ali. Você está deixando todo mundo doido.
Ele estendeu o braço e pegou seu nivelador de chumbo, seu prumo, seu caderno de anotações e desceram em direção a Korphe. Ele pegou a chave que mantinha pendurada numa tira de couro em volta do pescoço, abriu uma portinhola de madeira decorada com imagens budistas apagadas. Trancou as coisas de Mortenson lá dentro, com um pouco de carne seca de íbex, seu colar de contas de oração, e seu velho mosquete inglês. Então pediu a sakina, sua mulher, para lhes trazer chá.
Quando as tigelas de porcelana com chá amanteigado escaldante chegaram às suas mãos, Haji Ali tornou a falar:
-- Se você quer sobreviver no Baltistão, deverá respeitar o nosso modo de vida. Na primeira vez em que toma chá com um balti, você é um estranho. Na segunda vez, um convidado de honra. Na terceira, você já faz parte da família, e, pela família, fazemos qualquer coisa, até morrer.
Ele colocou a mão amistosamente sobre a de Mortenson.
-- Doutor Greg, você precisa de tempo para compartilhar três xícaras de chá. Podemos não ter educação. Mas não somos estúpidos. Vivemos e sobrevivemos neste lugar há muito tempo.
-- Naquele dia, Haji Ali me ensinou a lição mais importante que eu aprendi na vida, diz Mortenson. Nós, norte-americanos, pensamos que temos que realizar tudo rapidamente. Somos o país dos almoços de trinta minutos, e dos dois minutos de exercícios de futebol. Nossos líderes pensaram que a campanha de "choque e horror" poria fim à guerra no Iraque, antes mesmo de ela começar. Haji Ali me ensinou a compartilhar três xícaras de chá para diminuir o passo, e fazer com que a construção de relacionamentos fosse tão importante quanto a realização de projetos. Ele me ensinou que eu tinha mais a aprender com as pessoas com quem trabalho do que eu poderia esperar ensinar a elas.
(Era isso que eu queria compartilhar com vocês). O livro continua, nem vou ter a pretensão de escrevê-lo todo aqui. Mas só para dar uma palhinha, o tal milionário acabou morrendo de uma doença rara, mas antes criou o " Instituto da Ásia Central". Fez um depósito de um milhão de dólares na conta dessa instituição e nomeou Mortenson seu Diretor, com um salário de vinte mil e tantos dólares anuais e a incumbência de construir mais cinquenta e cinco escolas naquela região.
Quando acabar de ler o livro, se achar mais alguma coisa interessante, solt0-a aqui. Combinado?

domingo, 7 de fevereiro de 2010

TRÊS XÍCARAS DE CHÁ III

Mortenson passou a acreditar que não teria como retribuir a acolhida que recebera de seus anfitriões em Korphe, mas determinou-se a tentar. Começou a dar todos os seus pertences. Pequenos objetos úteis como garrafas térmicas e lampiões eram eram inestimáveis para os baltis, que caminhavam longas distâncias para pastorear seus animais durante o verão, e distribuiu-os entre os membros da extensa família de Haji Ali.
Mas foram os suprimentos que levara no kit médico da espedição, além de sua experiência como enfermeiro de traumatologia, os itens mais valiosos. Todos os dias, à medida que se recuperava, passava cada vez mais horas escalando as íngremes passagens entre as casas de Korphe, fazendo o possível para atendê-los no que precisavam. Com tubos de pomada antibiótica, tratou feridas abertas, lancetou e drenou ferimentos infeccionados. Aonde fosse, em todos os lares, via olhares implorando por auxílio, e baltis mais velhos que sofriam em silêncio há longos anos. A notícia sobre seu atendimento se espalhou, e os doentes que viviam nas redondezas de Korphe começaram a enviar parentes para buscar o "Dr. Greg", como ele passou a ser conhecido a partir de então no norte do Paquistão, não importava quantas vezes tentasse lhes dizer que era apenas enfermeiro.
Frequentemente, durante sua permanência em Korphe, sentiu a presença de sua irmã caçula Christa, especialmente quando estava com as crianças da aldeia.
Tudo na vida deles era com sacrifício, lembrando-lhe o modo como Christa penava para fazer as coisas mais simples. E também como ela perseverava, não importasse que dificuldade a vida lhe apresentasse.
Decidiu que quando chegasse a Islamabab, usaria todo o dinheiro que pudesse para comprar livros didáticos para serem usados na escola ou outro material escolar. Antes de dormir, deitado junto à fogueira disse a Haji Ali que queria visitar a escola de Korphe, e insistiu mesmo depois de perceber o olhar evasivo do homem. Finalmente, o chefe concordou em levá-lo à primeira hora, na manhã seguinte.
Depois do café da manhã, Haji Ali conduziu Mortenson por uma escarpa até uma extensa laje a 250 metros acima do Braldu. A vista era esplêndida, com as geleiras gigantescas do alto Baltoro contra o azul muito acima das paredes rochosas e cinzentas de Korphe. Mas Mortenson não estava admirando a paisagem. Ele estava estupefacto ao ver 82 crianças, 78 meninos e quatro meninas que tiveram a coragem de acompanhá-los, ajoelhados no chão gelado, a céu aberto. Haji Ali, evitando encarar Mortenson, disse que a aldeia não possuia uma escola, e que o governo paquistanês não lhes mandara um professor. O salário de um professor era de um dólar ao dia, ele explicou, que era mais que a aldeia poderia pagar. Então, dividiam um professor com a aldeia vizinha de Munjung que lecionava em Korphe três dias por semana. Durante o restante do tempo, as crianças faziam sozinhas as lições que lhes eram passadas.
Mortenson observou, com o coração na boca, os alunos atentos começarem seu "dia escolar" cantando o hino nacional do Paquistão. Abençoada seja a terra sagrada. Feliz o reino da abundância, símbolo das altas esferas, a terra do Paquistão, eles entoavam com doce inocência, com a fumaça saindo de seus hálitos, sinalizando a proximidade do inverno. Viu a neta de Haji Ali de 7 anos, Jahan, alta e imponente, usando um véu sobre a cabeça, enquanto cantava. Que a nação, o país e o estado brilhem em perpétua glória. O crescente e a estrela desta flâmula conduzam o caminho para o progresso e a perfeição.
Quando entoaram a última nota do hino, as crianças se sentaram em círculo e começaram a copiar as tabuadas de multiplicação. A maioria escrevia no chão com gravetos que haviam trazido. As mais "afortunadas", como Jahan, tinham tabuletas de madeira, nas quais escreviam com varetas com a ponta umedecida com lama.
Havia neles uma vontade de aprender tão grande, apesar de todas as dificuldades, que se lembrou de Christa e pensou que tinha que fazer alguma coisa.
Mas o quê? Tinha dinheiro suficiente apenas para viajar de jipe e ônibus de volta a Islamabab e pegar o avião para casa, se comesse pouco e ficasse nas hospedarias mais baratas.
Na Califórnia, ele somente poderia esperar por trabalhos esporádicos de enfermagem, e a maior parte de seus bens cabia no porta-malas do seu buik borgonha, bebedor de gasolina que era o que poderia chamar de lar, o "La Bamba". Ainda assim, deveria haver algo que pudesse fazer.
Ao lado de Haji Ali, num ponto alto do vale, com uma visão cristalina das montanhas que fizeram com que cruzasse a metade do mundo para escalar o K2, todo o propósito de colocar um colar de Christa no alto, de repente, perdera o sentido. Havia algo muito mais significativo que poderia fazer para homenagear a memória de sua irmã. Colocou as mãos sobre os ombros de Haji Ali, um gesto que o ancião fizera tantas vezes desde que tomaram sua primeira xícara de chá.
-- Vou construir uma escola para vocês, disse ele, ainda sem perceber que, com estas palavras, o rumo de sua vida acabara de mudar definitivamente de direção, tomando um caminho muito mais serpenteado e árduo do que as trilhas que tomara desde que descera do K2.
-- Eu vou construir uma escola, disse Mortenso. Prometo que vou.
(continua).

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

TRÊS XÍCARAS DE CHÁ II

É que, de repente, Mortenson se lembrou que seu plano de conquistar o K2 nada mais era do que a vontade de fazer uma homenagem à sua irmã Christa, doze anos mais nova do que ele.
Quando ela tinha 3 anos, viviam na Tanzânia, onde seus pais, nascidos no Minnesota, trabalhavam como professores e missionários luteranos. Christa contraiu meningite aguda e nunca se recuperou totalmente. Greg, então com 15 anos, se autodeterminou seu guadião. Embora ela se esforçasse para fazer coisas simples - vestir-se de manhã tomava quase uma hora - e sofresse fortes ataques epilépticos, Greg pressionou sua mãe, Jerene, para permitir que ela tivesse um pouco de independência. Ele ajudou Christa a conseguir um emprego em trabalhos manuais, ensinou-lhe o trajeto dos ônibus públicos, para que ele pudesse ir aonde quisesse e, para vergonha de sua mãe, discutiu detalhes sobre controle de natalidade, quando descobriu que ela estava namorando.
Todos os anos, servindo como médico e comandante de pelotão do exército norte-americano na Alemanha, trabalhando como enfermeiro em Dakota do Sul, estudando neurofisiologia da epilepsia numa faculdade em Indiana, na esperança de descobrir uma cura para Christa, ou vivendo como alpinista sem-teto num carro em Berkeley, Califórnia, Mortenson insistia que a irmã viesse visitá-lo durante um mês ao ano. Juntos iam assistir a espetáculos que muito a alegravam. Iam às 500 Milhas de Indianápolis, ao Kentucky Derby, iam de carro à Disneylândia, e ele conduziu-a através da estrutura arquitetônica de sua catedral pessoal naquela época, as paredes de granito do Parque Nacional de Yosemite.
Para o vigésimo terceiro aniversário, Christa e a mãe planejaram uma peregrinação do Minnesota aos campos de trigo em Deyersville, Iowa, onde o filme a que Christa assistira inúmeras vezes, O campo dos sonhos, fora filmado. Mas, no dia do seu aniversário, nas horas que antecederam à partida pela manhã, Christa morreu, depois de sofrer uma forte convulsão.
Após a morte de Christa, Mortenson pegou um colar de contas de âmbar entre os poucos pertences guardados da irmã. Ainda tinha o cheiro da fogueira que acenderam na última vez em que viera visitá-lo na Califórnia. Ele trouxera o colar para o Paquistão envolto em uma bandeira tibetana de oração, com um plano para honrar a memória da irmã caçula. Mortenson era alpinista e decidira prestar a homenagem mais significativa para ele. Iria escalar o K2, o cume que a maioria dos alpinistas considera o mais difícil de alcançar, e deixar o colar de Christa a 8.611 metros de altitude.
Como fracassara em seu intuito, de repente, resolveu voltar para aquela aldeia desconhecida que o socorrera e descobrir o que poderia fazer por eles como prova de sua gratidão e para homenagear sua irmã.
A partir da casa de Haji Ali, o chefe da aldeia, Mortenson criou uma rotina. Todas as manhãs e tardes circulava por Korphe, sempre acompanhado pelas crianças que o puxavam pelas mãos. Ele viu como esse pequeno oásis verde em meio ao deserto rochoso e empoeirado sobrevivia, graças ao trabalho dedicado, e admirou as centenas de canais de irrigação, feitos manualmente, mantidos pela aldeia, que distribuiam a água das geleiras, regando os campos e pomares.
Fora do Baltoro, fora do perigo, percebeu quão precária havia sido a sua sobrevivência, e como estava enfraquecido. Mal conseguia descer o caminho que leva até o rio e ali, na água gelada, quando tirou a camisa para lavá-la, ficou chocado com a sua aparência:
- Meus braços pareciam palitos de dentes, pareciam ser de outra pessoa.
Arrastando-se de volta até a aldeia, sentia-se trêmulo como os anciôes que ficavam sentados por longas horas sob os damasqueiros de Korphe, fumando e mascando sementes de damasco. Depois de uma hora ou duas por dia perambulando, sucambiu à exaustão, e voltou a olhar para o céu, deitado em seu ninho de almofadas junto à lareira de Haji Ali.
(continua).

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

TRÊS XÍCARAS DE CHÁ.

Estou lendo "a terceira xícara de chá" de Greg Mortenson e David Oliver Relin. Este último é um jornalista que narrou, neste livro, a história do homem que combateu o terror com escolas e livros no Afeganistão e no Paquistão, Greg Mortenson.
Mortenson era um alpinista norte-americano que, em 1993, se extraviou da comitiva de carregadores e guias levada por ele e outro alpinista, Scott Darsney, para tentarem escalar o K2, a segunda mais alta montanha do planeta e considerada pela maioria dos alpinistas como a mais difícil de ser escalada.
Haviam fracassado na tentativa. Na descida ele foi se afastando dos outros e se perdeu na geleira chamada Baltoro que mais se parecia um labirinto do que uma trilha.
Passou a noite sozinho na montanha gelada, tendo apenas um cobertor de lã fina do exército paquistanês, um cantil vazio e uma barra de cereal. Todos seus outros acessórios, saco de dormir forrado de plumas, roupas quentes, tenda, fogão, comida, até o lampião e os fósforos estavam na mochila que um dos carregadores transportava.
No manhã seguinte, com a claridade, perambulou metade do dia até encontrar o carregador que também se afastara da comitiva no intuito de encontrá-lo. Caminharam, como puderam, por mais sete dias para alcançarem a aldeia natal desse seu anjo da guarda de nome Mouzafer. A aldeia se chamava Askole.
Normalmente, à tarde, Mouzafer andava mais rápido para preparar o acampamento e o jantar, enquanto Mortenson ia mais devagar parando para descansar com frequência. À noite, a fumaça da fogueira de Mouzafer o guiava até chegar ao local de dormir.
Só que no sétimo dia, quando Mortensom avistou as primeiras árvores, cinco álamos curvados pelo vento, como o aceno de uma mão acolhedora, extasiado, contemplando o aspecto verdejante das árvores, não viu a trilha principal que se bifurcava até o rio e ele se perdeu pela segunda vez. Deveria ter atravessado o rio para seguir para deu destino, Askole, que ficava a treze quilômetros ao norte. Em vez disso, continuou na trilha que margeava o sul do rio, seguindo em direção às árvores.
Resumindo, acabou chegando numa outra aldeia de que ele nunca ouvira falar e que também nunca vira um estrangeiro, Korphe.
Em Korphe, foi recebido e acolhido e quando perguntou por Mouzafer é que perceberam o engano. Mas não o deixaram sair porque se gastaria mais um dia para chegar lá.
Ele acabou ficando nesta aldeia até se recuperar fisicamente.
No final do dia seguinte ao de sua chegada ouviu uma grande gritaria e foi, com a maioria dos moradores, até o penhasco sobre o rio Braldu, quando viu um homem pendurado sobre uma caixa suspensa por um cabo de aço estendido a 60 metros acima da água. Cruzar o rio dessa maneira diminuia meio dia de caminhada, mas uma queda seria fatal. Quando o homem chegou ao meio do desfiladeiro, Mortensom reconheceu Mouzafer, e viu que ele estava enfiado no pequeno cesto, feito de restos de tábuas, em cima de uma mochila de 40 quilos.
Reencontrou Darsney e foram de jipe até Skardu onde havia um alojamento de alpinistas chamado K 2 Motel. Mas Mortenson sentiu que alguma coisa o chamava de volta a Korphe, e retornou assim que conseguiu uma carona.
( Esse relato vai continuar porque a mensagem que essa história vai repassar ainda demora um pouco).