terça-feira, 12 de maio de 2009

LST CAP. I - O CAÇADOR DO SOL - Continuação.

- Eu era o Sovidio. Os mais velhos devem se lembrar de mim. Talvez, seus avós.
Estranho. Que nem acontecia com o pleco. Era só pensar e ele respondia. Aliás, nem respondia. Ela mesma é que pensava a resposta. Porque não ouvia som nenhum. A resposta parecia que estava dentro dela. E mais esquisito ainda é que a resposta continuava acontecendo mesmo quando divagava naquelas outras considerações. Parecia um sistema com dois canais. Mais ou menos como o som estereofônico. Enquanto pensava, continuava percebendo as explicações do Sovidio. Só que cada qual distintamente. Não havia superposição.
- Eu amava muito esse lugar, apesar de não ser daqui. Vivi aqui por muitos anos, na minha velhice. Sentia que as pessoas gostavam de mim. Havia, é claro, alguns que me consideravam maluco. Mas, talvez por isso mesmo, ninguém me hostilizava. Às vezes, percebia uns olharzinhos de deboche, outros, de comiseração. Essa palavra você conhece. Apareceu naquela crônica que vocês leram na aula, outro dia, e você perguntou à professora. Depois viu que deu bandeira porque o sentido era claro. Se a pessoa estava sofrendo e o autor sentiu comiseração, não precisava nem perguntar o significado. Era só raciocinar, não é mesmo? Mas a gente só aprende quando percebe os próprios erros.
O outro canal funcionou de novo. Como é que ele sabe disso? Será que ele sou eu mesma? E ele continuava.
- Estranhavam quando eu dizia que ia buscar o sol. Riam, com paciência, quando lhes mostrava as pedras preciosas que eu encontrava nos morros da cidade. Só depois foi que eu entendi o porquê. Eu vivia noutra época. Meus avós foram escravos e trabalharam na cata de ouro e pedras preciosas. Quando pequeno, ouvia suas histórias e elas ficaram comigo. Agora quero repassá-las para você. Porque eu vivia noutra época? Eu quis apagar aquelas lembranças porque sabia que se falasse delas ia provocar um reboliço tão grande que tive medo de causar a destruição da região em que vivia. A ganância e a insensatez das pessoas são muito maiores do que o que é realmente importante. Quando percebi que se revelasse umas coisas que eles me contaram ia ser uma loucura, fui ficando preocupado. Comecei a pensar só naquilo e, com o tempo, passei a resmungar meus pensamentos. Aí diziam que eu estava conversando sozinho. Quem conversa sozinho é doido. Na verdade, as pessoas que se julgam normais acham que se está conversando com alguém imaginário, com um produto da própria cabeça. Em suma, com alguém que não existe. Quem conversa com o inexistente só pode ser louco. Eu mesmo comecei a acreditar que era maluco. E fui abandonando tudo. Meu trabalho, minhas preocupações e me afastando de minha família.
_ Quando percebi estava sozinho no mundo. Aí, virei andarilho e rodei meio mundo. Até que, já velho e cansado, vim parar aqui. Adotei esse lugar e sentia que fui adotado também. Você está pensando, se essas histórias podiam ter causado uma destruição, será que agora não provocariam mais nada? Ou ele vai me contar essas coisas e me pedir segredo? Por quê? Para que? _ Você é questionadora, não? É por isso que procurei você. Gosto de quem não aceita o que lhe dizem sem questionar. Engolidores de sopas não percebem o que estão comendo. A boca e a mastigação são os questionadores do sistema digestivo. E a dúvida, a procura das causas, os porquês são os vigilantes do conhecimento verdadeiro. Quem não questiona não aprende. Só acumula. E acumulação pode trazer coisas boas, mas traz muito lixo também.
Nisso o raminho, em que estava, começou a balançar perigosamente e Grace acordou assustada com um ventinho frio entrando pela janela, sacudindo a cortina. Levantou-se apressada e se arrumou para ir à aula. Nem olhou para o lado do aquário. Se tivesse olhado...
Ao lembrar-se da referência ao aparelho digestivo, à boca e à mastigação, sentiu uma coisinha roendo por dentro. Gente como estou com fome! Aquele pleco que fique me esperando.
Seus dois irmãos, impacientes, esperavam para almoçar. A mãe só admitia que as refeições fossem feitas com todo mundo junto. Dizia que sua mãe também fizera assim com ela e os irmãos. Na época, achava uma bobagem de mãe. Depois que teve seus filhos, entendeu que é a coisa mais certa. Era o momento mágico em que se diziam as coisas mais diversas possíveis. Traçavam-se planos. Trocavam brincadeiras. Às vezes, umas rusguinhas também. Mas isso é inevitável. O que não aceitava era ficar cada um no seu canto, como se fossem estranhos.

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