O último que nos deixou e foi personagem deste blog foi o tio Raimundinho. Depois dele, muitos outros partiram. Certamente não vou conseguir me lembrar de todos, mas vou tentar.
Hoje acabo de saber que o Sr. Jesus Quintão também deixou para trás o constrangimento que estaria sentindo se não estivesse há muito tempo alheio a tudo que acontecia. Ele que não gostava de depender de ninguém. Que vivia sozinho na fazenda. Que vinha à cidade sem mudar seus hábitos. Um dos mais típicos era só andar descalço. Nunca o vi com nenhum tipo da calçado. E isso não lhe tirava nem lhe acrescentava nada. Sempre o vi como um homem prestativo, amigo de todos e muito tranquilo. Era vizinho do Sr. Luiz pega-pega.
Goleiro dos bons no seu tempo. Por isso o apelido do Sr. Luiz Gonzaga. Que também nos deixou e foi jogar no exterior dessa Terra. Imagine-se ele agarrando planetas e estrelas. Só pedimos que depois não quique a bola antes de arremessá-la para os atacantes. Senão, um caos geral se abateria sobre o universo. Gostava de passar e ve-lo sentado em sua poltrona, calmo, sossegado, às vezes conversando com o Sr. Raimundo Nonato, visita diária que vinha trazer-lhe boas recordações e bom humor. Herança que deixou para o Tacão, Zé Pombal, Tarcisio e Titita.
Logo depois, na segunda casa, vivia o Sr. Chiquito Quintão, casado com a Dona Maria do Sr. Chiquito. Eram tantas Marias, que os nomes dos maridos, para as casadas, ou do pai/mãe para as solteiras, funcionavam como sobrenomes garantidores de identificação. No seu enterro, seus filhos, netos e bisnetos praticamente completavam a lotação da Igreja. São tantos descendentes que acho que a Dona Maria deve ter um livro para registrar tanta gente e não esquecer seus nomes. E foram tantos bebês que o Sr. Chiquito ficou uma pessoa pacata, calma e pai da paciencia. Adiantava ficar nervoso com tanta criança chorando, pulando e aprontando?
Agora, vamos pular várias casas para chegar à esquina da saúde. Onde nós todos íamos procurar socorro para as estrepulias que deixavam cicatrizes. Ou tomar as vacinas, tão poucas em nossa época, mas todas via injeção. Primeiro foi o Carlos Alberto. Partiu como viveu. Quieto no seu canto, se esforçando para vencer sua limitação de comunicação. Vitória conseguida a duras penas, mas vitoria vitoriosa. Trabalhou, formou uma família, teve filhos e até uma netinha. Depois veio cuidar do pai doente e assim se foi. Antes do pai e com a consciencia de quem foi um vitorioso e um bom filho.
Depois o Sr. Osni foi cuidar dos que o precederam. E estavam todos tão carentes de cuidados com a saúde que o Sr. Osni vai enfrentar uma faina sem precedentes. Ainda mais que a maioria já viajou bem caidinha, com a saúde bem debilitada. Mas o seu alto astral vai resolver tudo. Vai rever a Luzia do beco e esclarecer aquela história que ele me contou de quando era auxiliar na farmácia do Sr. Nelson Bruzi (será que estou fazendo confusão?) e foi levar um remédio fora de hora para a Luzia curar uma dor de cabeça. A Luzia, segundo ele, queria indispo-lo com o patrão dizendo que não havia dor de cabeça nenhuma.
Mesmo em frente da praça, tia Rosa (tia de todos os moradores da cidade) do Sr. Manoel Moreira presenciou toda a história da cidade. Do alto dos seus cem anos viu ser construída a atual Igreja, a própria praça teve sua assistencia quando foi feita e sofreu suas inúmeras reformas. Viu fazerem o prédio da Prefeitura. Viu Dadi fazer sua casa. Sr. Manuel de Assis construir a casa que agora é da Titina, aliás, D. Maria das Graças Morais Moreira, né Titina? Não sei se acrescentou o Assis do nosso Idílio que não morreu. Só que a vez é da tia Rosa. Miudinha e esperta como uma rolinha, não perdia uma festa e era das mais assíduas frequentadoras das ginásticas do grupo da terceira idade, que só era da terceira no calendário, porque era mesmo é da segunda idade.
Outro pulo e paramos na entrada do caminho definitivo. Sr. Paulino que ficara tão emocionado quando escrevi sobre Dona América e me agradecera com lágrimas nos olhos, também não resistiu à saudade e foi se encontrar com ela. Foi uma partida sofrida, dolorosa. Parecia que não queria ir. Preocupava-se com as pequenas coisas dessa vida. Com a casa. Uma goteira que não tivera tempo de consertar. Se as plantas não estavam precisando de água. E se as meninas tivessem se esquecido de ir lá verificar se tudo estava certo? E queria voltar pra casa. Se fosse necessário, que montassem aquela parafernália em casa, desde que pudesse voltar. E ficava nervoso, uma característica que nem a doença conseguira apagar. Até que Ademir, me contou no velório, conversou com ele, já em coma, dizendo-lhe que podia partir em paz, que todos iam ficar bem, que fosse se encontrar com sua América. O filho de longe já havia chegado, já haviam se encontrado, podia viajar sem susto. Aí ele se acalmou e partiu.
Lá em Itabira, seu cunhado, irmão caçula de Dona América, também lutava para continuar entre nós. O nosso Criolo, mosquito em Itabira, Amir de nascimento, brigava com bravura para continuar espalhando sua alegria. Torcendo pelo seu Cruzeiro, brincando com suas netas e participando das festas do seu clube. Me lembro do Criolo, ainda quando era namorado da Cor Marie, na casa da tia Rosa, a outra tia Rosa, a tia Rosinha, escutando um jogo do cruzeiro pelo rádio (não existia Televisão em Marlieria), de pé, com a mão segurando o dial do aparelho e tremendo como se estivesse com febre, Ele era fanático. Mas foi levar alegria para o pessoal do outro lado.
Ao lado da Igreja, o chefia, Sr. Jesus de Oliveira, saiu apressado para chegar na fazenda antes da chuva, mas a chuva o surpreendeu na estrada e, na passagem das águas do ribeirão do Derrubado, teve o carro tomado pela enchurrada. Segundo laudo morreu enfartado. Não tinha água nos pulmões. Apaixonado pelo forró. Viajava longe para arrastar os pés, fosse em salão de baile ou em terreiros de terra batida. Adorava umas cervejas que chamava de loiras e tinha uma coleção de carros já fora de uso. Dizem que nunca vendeu um só dos carros que comprou. Ia deixando lá na sua fazenda Bela Vista, sem uso. mas com os impostos anuais pagos religiosamente. Jeeps, caminhonetes e fuscas aos montes. Lá se foi tio Jesus se encontrar com o Natim, um de seus empregados mais fiéis.
Algumas casas a mais e Irene também quis rever o Julito e sua mãe tia Nhanhá, entre os que partiram mais recentemente. Era a mãe da paciencia, primeira numa carreira imensa de irmãos e irmãs, praticou essa virtude por necessidade. Bordadeira de mão cheia, de seus dedos surgiam maravilhas para serem admiradas de joelhos. Eximia biscoiteira, suas receitas faziam sucesso e arrancavam suspiros dos que tinham problemas com a balança. Irene partiu serena, deixando esse legado de paz e compreensão.
Saltando uma casa, chegamos na casa do Sr. Raimundo Nonato, de onde foi o Eduardo de Maria Inês, que antes era o Eduardo do Sr. Nenzinho, que pregou uma peça em todo mundo. Saiu para pescar e só voltou para as despedidas. Ficou repousando no seu Santo Antônio, de frente para o lugar onde nasceu e cresceu. Escutei de sua boca um dos xingamentos que achei mais interessantes entre os que já ouvi. Ele estava consertando um carro e um de seus ajudantes fez uma besteira qualquer e ele lascou na maior calma "ô, seu recheio de tripa"! Xingou o cara de uma coisa bem nojenta, mas com classe e distinção. Era assim o Eduardo. Carros para consertar lá, acho que ele não vai encontrar, todo mundo tem asas, mas gente para ser xingada não vai faltar. Afinal, maus políticos também morrem...
E o Sr. Nelsinho, lá mesmo, perto do Santo Antônio, mais precisamente no Paraíso, também completou seus bem vividos cem anos antes da viagem. Não vai sentir nenhuma diferença. Continua no Paraíso, só mudou de endereço, como quem muda de casa na mesma rua. Era irmão do Sr. Osni, e fora dono de farmácia como ele. Depois se retirou para a fazenda e lá criou sua família e permaneceu até o fim.
Viram que segui um critério mais ou menos geográfico para me lembrar do maior número possível das pessoas que deixaram nossa comunidade nesse período em que esse blog ficou esquecido, guardando poeira e teias de aranha. É claro que são as pessoas com as quais tive algum tipo de relacionamento, não engloba todas as pessoas que faleceram. Mesmo assim posso ter me esquecido de alguem. Quem se lembrar de alguem de quem me esqueci, por favor, me dê um alô.
AV.